BANDEJA DE PRATA
Bolo de nozes
Luísa acordou sem o despertador tocar, esticou seus braços no lençol e rotacionou lentamente os pulsos. Tinha dormido apenas 4 horas naquela noite. A insônia tinha voltado a atacar.
Há meses não dormia 7 horas direto. Já não sabia o que era aquilo. Nessa semana passara algumas madrugadas lendo Noite de Reis, de Shakespeare. Rir da desgraça alheia é bem mais confortável do que rir da própria desgraça.
Era sábado e o dia estava frio. Vestiu um casaco e pegou uma xícara de café. Foi até o rio que passava atrás de sua casa. Soprava a fumaça daquele café muito quente observando a água correndo rápido. A manhã estava como ela gostava, gelada, cinza e a correnteza descia rápido. Por um momento desejou que a correnteza fizesse as horas passarem mais rápido. Ia encontrar o César.
César era um escritor, professor de literatura da Universidade Federal. Há algumas semanas, Luísa tinha encarado aqueles olhos muito escuros por horas, não era possível distinguir a pupila da íris, ela bem que tentou achar alguma nuance, uma pintinha, qualquer coisa... Não tinha, simplesmente eram os olhos mais pretos que ela já tinha visto. E comia muitos doces e colocava muito açúcar no suco de morango.
Luísa era confeiteira, a padaria da família dela tinha mais de 100 anos. Ainda assim, ela tinha ficado espantada com a quantidade de açúcar que César tinha ingerido em apenas um café da tarde, em frente à universidade em que dava aula. Desde então, ela estava ponderando se uma pessoa que já tinha sofrido um enfarto deveria comer tanto doce. Como não chegara a qualquer conclusão, estava batendo um bolo com massa de nozes para levar à noite. Afinal, não se deve chegar na casa de alguém sem levar alguma coisa.
Aquele era um bolo que não levava tanto açúcar e era muito apreciado mesmo sem cobertura. As nozes eram um ingrediente considerado fino e o formato redondinho do bolo, na embalagem dourada, dava uma boa impressão.
Sobre péssimas ideias e o prazer de concretizá-las
Aos 35 anos, César nunca se casara. Dizia que seus últimos relacionamentos tinham terminado por culpa da instabilidade das companheiras. Uma tinha se descoberto homossexual e a outra o viciara no poliamor. E para ele não havia nada mais doce do que desfrutar da companhia de várias mulheres.
Era um homem bonito, cabelo ondulado, alto. Já tinha publicado nove livros. Como eles se conheceram é uma história boa de contar.
Os dois gostavam de cantar e tinham alguma experiência em coro. Numa manhã de sábado, Luísa respondia uma prova teórica do curso de canto quando César entrou. Ele usava uns óculos de armação preta e o farto cabelo castanho preso em dois lugares. Parecia meio bêbado. Subiu as escadas do auditório e reparou na mulher ruiva que vestia uma camiseta com uma frase tirada do livro favorito dele, Noite de Reis: “Em vez de meu peito, é uma gaze fina que esconde o meu coração”.
Imediatamente fez um gesto para ela, colocou a mão no peito e balbuciou algo como “adoro”. Luísa não entendeu, achou estranho.
César se sentou na fileira de trás e começou a preencher o teste. Parecia que a madrugada em claro tinha apagado a sua memória. Passava a mão direita pelo cabelo, passava a mão esquerda, onde estavam as respostas?
Luísa olhava para trás. César parecia meio sujo, meio desgrenhado... inofensivo, essa era a palavra que ela procurava. Gostou de César porque ele parecia inofensivo. Quase um cachorrinho que quer ser adotado, com aqueles olhinhos escuros pidões. Quem sabe fosse interessante conhecer esse rapaz que precisava de um banho. Tão bonito, estudava música como ela. Meio sujo, mas realmente bonito.
E pronto, mesmo sem admitir, naquele momento ela tinha comprado a ideia, a possibilidade... Porque às vezes, nos apaixonamos pela ideia, não só idealizamos a pessoa, mas nos deixamos levar pela possibilidade de sentir algo por alguém. E não existe nada mais satisfatório do que nos lançarmos a algo que intimamente sabemos que é uma péssima ideia.
Dez minutos após o início da prova, César estava satisfeito. Já tinha inventado respostas para todas as questões. Fingiu que ainda estava escrevendo para ficar olhando a linda cabeça de Luísa. Assistia ela passando os dedos da mão direita pelos cabelos, rodando o anel que usava no dedo do meio e batendo no lápis com a unha. Que figura agradável! Desceu as escadas do auditório, sem olhar para trás, entregou a prancheta com a prova e seguiu para o banheiro. Em frente ao espelho, lavou o rosto com o sabonete líquido que ficava na pia, sentiu um pouco de nojo do cheiro, mas era o que dava para fazer. Prendeu o cabelo, ajeitou a camisa e colocou a mão no bolso. Onde estava a sua carteira?
Voltou e encontrou o auditório vazio. Se abaixou e começou a procurar a sua carteira. Quase que engatinhando, foi passando a mão no carpete da poltrona 1 a 34. Se assustou com um barulho a sua frente.
Luísa olhava com um meio sorriso aquele homem, daquele tamanho, agachado entre uma fileira e outra de poltronas. Não conseguiu esconder que estava tendo algum prazer vendo a cena. César se levantou e disse “Em vez de meu peito, é uma gaze fina que esconde o meu coração”. Luísa sorriu. Já tinha lido aquela frase em algum lugar. De onde era?
César se aproximou e puxou a camiseta dela pela barra. Sim! Shakespeare! Luísa pensou rapidamente na origem daquela peça de roupa e sorriu timidamente. Nesse momento, os dois estavam muito próximos. E a lembrança da frase da camiseta e daquela roupa estúpida, foi substituída por um aviso já muito conhecido em sua mente. Não se apaixone, não seja estúpida novamente. Deu um passo para trás. César deu um passo para a frente. Se apresentaram rapidamente, sem muitos detalhes.
O convite veio dele, ou veio dela? Nunca ficou muito claro. Mas combinaram de tomar café naquela tarde, em frente à Universidade Federal. Ele sabia que a ideia não era boa, não tomava café e, principalmente, seu coração não estava em jogo há algum tempo. Luísa já tinha comprado a ideia desde o primeiro olhar. Como era possível? Amor à primeira vista é para os fracos, quase um crime contra si mesma. Não poderia haver sentimentos naquilo! Os dois resolveram isso quase ao mesmo tempo e claro, estavam muito resolutos. Nada poderia dar errado. Duas pessoas se conhecem e determinam que não haverá nenhum apelo romântico entre elas, nem hoje, nem nunca. E isso sempre dá muito certo.
Sobre corações partidos
Corações partidos, dores por amores perdidos, pelo tempo perdido, afeto desperdiçado, atenção desprezada. Tudo isso causa pânico às pessoas mais coerentes. Sim, não há nada bom nessas situações. Ainda assim, sentimentos são inerentes aos humanos normais. Amar, se apaixonar, gostar, odiar, tudo isso faz parte da alma humana. Fugir também faz. Mas quem consegue fugir de si mesmo, quando o coração é algo feito para ser laçado? O laço do passarinheiro... peste perniciosa que se instala e deixa a sensação de que estamos fodidos. O pior é ficar feliz, fodido e feliz! Rindo de maneira ridícula e fodido! É o tal olhar para o abismo. Você percebe o abismo te olhando de volta, sente o perigo, se atira. Nada mais sedutor do que o olhar do abismo.
Eu não tomo café e seus desdobramentos poéticos
Já recuperado da ressaca, banho tomado, Sauvage aplicado nos pulsos e no pescoço, César chegava na cafeteria com uma blusa de botão e cabelo ao vento. Carregava um livro. Abriu meio sem vontade de ler, mais para fazer um tipo. Conhecia bem seu corpo e como parecer mais interessante com determinadas ações e movimentos. Era um perigo.
Luísa virou a esquina pensando naquele homem inofensivo. Ia ser bom ter uma pessoa nova para conversar, beber alguma coisa nos fins de tarde, quem sabe discutir as aulas de canto? Um amigo talvez? Poderia ser, mas era muito bonito para ser apenas um amigo. Desperdício terrível de uma tarde com um vestido vermelho cereja.
Passavam das 6 da tarde quando César concluiu o audiobook do conteúdo do seu Linkedin. Luísa olhava desesperada para os 7 envelopes de açúcar vazios em cima da mesa. Eu devo avisá-lo que isso é um exagero? Foram apenas dois sucos de morango. E ainda devorou três brigadeiros! A dona da cafeteria veio da cozinha avisar que o lugar ia fechar. Ótimo, pensou Luísa, mais um envelope de açúcar e esse homem vai ter uma crise de hiperglicemia.
Foram para uma outra cafeteria, num bairro chique, essa pelo menos ficava aberta até tarde. César pediu chocolate quente e Luísa estranhou. César contou que não tomava café e Luísa começou a rir. Me convidou para tomar um café... Ah sim, café era um sinônimo mundial de vamos nos conhecer melhor, César explicou e ainda disse que havia sido Luísa quem sugeriu o encontro. Luísa se defendeu, é claro que não, tinha provas. Não, não tinha provas. Ela procurou dentro de si mesma um motivo pertinente para ter ficado envergonhada de ter sido acusada de marcar o encontro. Não achou nada que fizesse sentido, mas continuou negando.
César aproveitou que Luísa estava rindo, menos tensa e passou levemente a mão pela alça do vestido dela, descendo pelas costas. E perguntou: “Posso te beijar?”. Luísa respondeu: “Não entendi, você quer me beijar?”. Não houve resposta. César puxou Luísa pelos cabelos e a beijou. Alguns minutos depois o garçom passou avisando que a cozinha ia fechar, se eles queriam pedir mais alguma coisa. César pediu um pedaço de bolo e continuou contando como tinha quase morrido meia dúzia de vezes nos últimos anos.
A coisa ficou tão confusa que este narrador não conseguiu acompanhar tudo, que começou com um ataque de cães raivosos, passando por livros perdidos em uma enxurrada e terminou em um enfarto. A cafeteria fechou e eles resolveram andar pelo bairro. Luísa pensava calada, como é possível não gostar de alguém como ele? Deve ter algo escondido. Nas próximas duas esquinas Luísa perguntou vários detalhes sobre os antigos relacionamentos de César. E ele falou com naturalidade. Contou que não acreditava em monogamia, que estudava o assunto há vários anos e que tinha escrito um livro sobre isso, inclusive.
César perguntou sobre a camiseta com a citação de Noite de Reis. Luísa olhou para cima, procurando uma história contável, uma versão menos bizarra da realidade. Ele a pegou pela mão e insistiu na pergunta, não havia nada que não pudesse ser contado. César acreditava ser um poço de esperanças, equívocos, ressentimentos, más experiências, vícios e perversões. Portanto, adorava escutar e rir da verdade, de vexames e infâmias (daquelas que não eram suas, obviamente).
Olhando firmemente para os sapatos que calçava, franzindo a testa, começou a organizar a história racionalmente: primeiro deveria esclarecer quem era o dono da blusa, e onde os fatos se deram. O motivo que fez Luísa andar seminua por uma avenida segurando um livro de autoajuda, num sábado, meia noite, era complicado de explicar. E Luísa não teve coragem de falar.
Percebendo a hesitação, César se adiantou para contar uma história dele, para ganhar a confiança daquela moça, que a cada momento o deixava mais interessado. “Olha, eu estava numa festa com a minha ex e aí uma cantora lindíssima, amiga da minha namorada, veio falar comigo. Bom, eu ia começar a flertar com ela, era apenas um flerte, veja bem, um flerte! Aí ela jogou o cabelo para o lado esquerdo e eu estava sentado num sofá conversando e bem, eu nem sei como isso aconteceu, porque eu estava apenas flertando, do nada ela estava com a bunda na minha cara! Imagine o susto! Eu flertei com a bunda da menina! Ela praticamente se sentou na minha cara! Bom aí eu...”, César falou por mais 10 minutos.
A partir daí Luísa não escutou mais nada. Ela não sabia se tinha sido a entonação grave que César pronunciou ou a escolha do substantivo flerte ou mesmo a conjugação do verbo flertar... A verdade é que a utilização de - flerte, flertando, flertei - junto de bunda fez o cérebro de Luísa parar. Ela pensava “...quem mistura flerte com bunda numa mesma frase? Me fodi, desse jeito eu me apaixono”. Não conseguiu rir do que César estava contando. Nesse momento ela queria morrer, foi sorvida por César. E ao mesmo tempo que admitia a derrota para si mesma, se transformava numa pessoa esperançosa.
Sem perceber a confusão mental que se passava em sua frente, César começou outra história constrangedora, sobre como tinha sido humilhado por uma atriz francesa famosa, que não quis dividir um cigarro com ele. E ainda contou que tinha uma lista de pessoas que ele queria se vingar, enumerando as vítimas. Muito séria, Luísa respondeu que tinha se inscrito em um concurso de confeitaria na França e poderiam usar a cerimônia de premiação da Le Cordon Bleu para atrair a tal atriz e envenená-la.
César parou e ficou olhando para Luísa. Aquele cabelo ruivo, aquela sagacidade... Perguntou se ela não ia colocar o dono da camiseta na lista de vinganças.
Luísa pensou, pensou e finalmente contou a história:
Luísa: Eu estava na casa desse meu amigo, conversamos e bem, eu acho que nenhum de nós dois realmente achava que estávamos ali apenas para flertar. Como eu tinha trabalhado o sábado todo na padaria e ido direto para poupar tempo, tomei banho na casa dele e vesti a camiseta, que estava em cima de uma cômoda. Abri uma garrafa de vinho, jantamos e num pequeno deslize eu o chamei de Léo.”
César: Mas quem é Léo?
Luísa: Não sei.
César: Qual é o nome desse seu amigo?
Luísa: Jonas.
César: Não entendi, quem é Léo?
Luísa: Não tenho ideia.
César apoiou o braço em um muro para manter o equilíbrio enquanto gargalhava.
César: Mas Luísa, pelo amor de Deus, quem é Léo?
Luísa: Te juro que não conheço nenhum Léo, não sei de onde veio isso. Esse meu amigo ficou deveras chateado e obviamente não acreditou que não existisse nenhum Léo. Aí me pediu para ir embora. E bem, eu fui... e esqueci de vestir a calça. Na saída, ele me deu um livro de autoajuda. César, para de rir! Eu estava perdidamente apaixonada pelo cara. César, você não está levando a sério, eu sofri bastante. O cara me deu um livro de autoajuda!
Ainda rindo, César abraçou Luísa com toda a sua força. Ela sentia o sorriso nos lábios e o corpo dele tremendo de rir, se segurando para não gargalhar. Naquele momento, César foi feliz. E a felicidade é algo raro.
O abraço virou algo a mais, capaz de fazer os transeuntes do bairro chic ficarem com um pingo de inveja, do casal que se agarrava no muro.
No dia seguinte, César começou a escrever:
Meu coração é algo que se soltou
E agora vaga procurando peito disponível, lugar para morar por alguns instantes
Ele não pula, ele voa
E se vires o meu coração voando, não tente alcançá-lo
Ele tem algo indomável, tendo vontade própria, só me resta aceitar.
Sobre poder
Pensando sobre o poder que temos sobre os outros. Sempre me pareceram injustas aquelas frases motivacionais de que as pessoas só nos machucam, se deixamos, ou melhor, se consentimos. Luísa e César não queriam machucar um ao outro, isso nunca passou pela mente deles. Mas há algo trágico em toda relação, que envolve o poder. O poder no seu aspecto mais doce e mais primitivo, porque se deixamos determinada criatura entrar nas nossas vidas, damos poder a ela. Ela pode nos fazer sorrir, chorar, ter um colapso nervoso. E pior, é que nem sempre damos essa permissão... ela simplesmente ocorre.
E o poder de quem consegue nos fazer rir e aguentar a desgraça desse mundo é enorme. Ninguém quer se afastar de quem faz a vida mais leve, doce ao ponto de transformar o amargor da rotina em algo palatável. Os emocionados têm um espaço especial no coração do Universo, os românticos e exagerados também. A eles pertence a esperança da continuação da nossa espécie inteira.
Cemitério de paixões
Ainda com um sorriso no rosto, César pegou sua edição de bolso de Noite de Reis e procurou o ato e cena da citação da tal camiseta. Após alguns minutos de leitura, Shakespeare grita: “Um amor que se conquista é bom, mas um amor que nos é dado sem pedir é ainda melhor”. Esse terceiro ato...
Ele grifa alguns trechos do livro e escreve na contracapa uma fala famosa de Julieta, “O que há em um nome? Uma rosa com qualquer outro nome teria o mesmo cheiro doce. Pode me chamar de Léo, contanto que fique comigo a noite inteira”.
Fechou o livro e pegou o celular para mandar uma mensagem para Luísa. Largou o celular e pegou uma agenda. Começou uma lista de 10 livros e sonetos de Shakespeare para lerem juntos. “Essa lista vai durar meses, talvez anos!”, pensou César rindo. Imediatamente ficou irritado e constrangido com o próprio pensamento. Meses? Anos? Não! Não podia nem admitir que tinha escrito essa lista de próprio punho. Tinha assinado e tudo... era uma prova cabal de alguma coisa, mas do que? Tinha algo acontecendo e ele não estava de acordo. Ao invés de rasgar a lista, a escondeu dentro de um caderno. Vai que um dia precisasse de uma prova de loucura extrema para se internar num hospício, ou para conseguir uma receita com um psiquiatra. Melhor não se desfazer da lista.
De pé, encarou as estantes da sala com um ar sério, preocupado. Fixou seus olhos nos manuscritos de seus nove livros. Nove livros, nove decepções, nove mortes enfeitadas e meandradas do que havia de mais visceral em sua alma. Toda vida amorosa de César exposta ao deleite do público. César havia escrito nove livros belíssimos, trágicos e cômicos (todos premiados, inclusive) entrelaçando no enredo detalhes perversos, inusitados e encantadores de mulheres reais. E todas essas personagens estavam mortas. Ele matara todas as personagens nas histórias, como num ritual. Seus livros eram um cemitério de paixões. Todas as mulheres que tiveram alguma importância na vida dele estavam ali, naquelas histórias. Invariavelmente todos os livros tinham finais tristes. Quando algum jornalista perguntava se aquelas personagens existiam, ele apenas dava um sorriso de lado e negava. Às vezes piscava com o olho esquerdo.
Uma mensagem de Luísa chega:
“Se essa rua, se essa rua fosse minha, eu mandava, eu mandava açucarar,
Com pedrinhas de açúcar, para o César passar”.
Sentado no sofá, com as duas mãos cobrindo o rosto, César balança a cabeça para a esquerda e para a direita, estava incrédulo, passado. Era a pior tentativa de verso que ele já lera. E pensava “Esse é o tipo de coisa que eu suscito nas pessoas!”. Imprimiu o texto da mensagem e guardou junto da sua lista Shakesperiana. Tinha resolvido não ir para o hospício sozinho, Luísa teria que ir junto! Foi trabalhar, na volta deixou a edição de Noite de Reis, com a dedicatória, na padaria de Luísa: “Fala que o Léo mandou pra ela”.
Naquela madrugada, César andou pelo apartamento no escuro, só com a luz da rua, que entrava pela varanda. Vestia um roupão branco, muito fino. Mandou mensagem para o cardiologista. Ele sentia que estava morrendo de novo, enfartando. Ponderou se era melhor mandar a mensagem para o médico ou para sua mãe, como era madrugada, ninguém veria suas mensagens e estaria morto em algumas horas. Seria encontrado sem vida, sozinho, escritor premiado. Pegou a lista de livros de dentro do caderno. Tanta coisa boa para ser lida ainda. Acendeu um cigarro, tragou devagar.
Essa imagem de César - com seu roupão de grife, desesperado olhando um pedaço de papel, com um cigarro na mão direita - era de partir o coração. Também abriu uma garrafa de saquê e comeu um alfajor. Já que ia morrer, resolveu morrer direitinho, com direito a alguns últimos prazeres. Só ia faltar uma coisa, mas pensou bem e preferiu poupar o Samu de certos constrangimentos.
A morte estava demorando e o céu ficou lilás. César viu o nascer do sol na varanda, olhou de rabo de olho para os nove manuscritos encadernados e dormiu, finalmente.
Acordou por volta das 9h, com sua mãe ligando desesperada e uma mensagem de Luísa: “César você é um bichão”. Atordoado, levantou-se da cama com o celular na mão e foi até a estante. Os manuscritos não tinham desaparecido e aquelas experiências ainda ardiam na sua alma. Tentou colocar a culpa em seu signo de peixes, já que dizem que os signos do elemento água sentem as coisas com mais intensidade. “Mas calma, eu sou o que? Já me chamaram de várias coisas, mas isso é novidade!”, pensou. Escreveu “bichão no Google.
Ia ligar pra Luísa, mas era melhor não. Atualmente as pessoas têm verdadeiro desprezo por ligações. Mandou um áudio no lugar, porque é bem diferente, a voz fica diferente, vai ver... Mandou dois áudios de três minutos. Riu sozinho e se imaginou a caminho do hospício.
Ah, o médico nunca retornou a mensagem de César, que graças a Deus não estava enfartando.
Presente do Léo
Luísa recebeu o livro com um sorriso de canto de boca. Seu pai percebeu, mas não fez nenhum comentário. Só olhou para cima com ar de “lá vem”, tirou a touca que cobria o farto cabelo ruivo e saiu da cozinha. Luísa colocou o livro dentro da bolsa e continuou checando o estoque de frutas secas. Pensou em ligar para o César, mas julgou não ter tanta intimidade com ele. Tirou uma foto do livro, acrescentou um Emoji de coração e enviou.
Já em casa, bebendo café, Luísa começou a folhear o livro de trás para frente. Chegou na contracapa. Calçou os chinelos, abriu a porta da cozinha, que dava para a margem do rio e começou a caminhar na grama.
O rio passava dentro da sua propriedade e cruzava três cidades. Quando chovia muito, ela verifica a altura da água várias vezes ao dia, mas nunca tinha acontecido uma enchente o algo parecido.
Ainda com o livro na mão, Luísa se aproximou da margem. Leu novamente a dedicatória. “O que há em um nome? Uma rosa com qualquer outro nome teria o mesmo cheiro doce. Pode me chamar de Léo, contanto que fique comigo a noite inteira”. Pensou ter visto algo pulando na água e chegou ainda mais perto. Desceu a escada de ferro que encostava na água. De costas para o rio, encostou o pé na água gelada. Subiu. Sentou-se na margem. Lembrou que no dia em que conhecera César esperava encontrar Jonas depois da prova e desfazer o mal-entendido do caso Léo. Por isso estava vestindo a roupa dele, para fazer graça. Mas Jonas não tinha aparecido. E tinha conhecido César só por causa da camiseta de Jonas. Era puxada de tapete, após puxada de tapete do destino. Agora ia ter que ler o maldito livro... Luísa ria. Como era possível?
Desde pequena usava a margem do rio para pensar. Quando era criança e fazia algo errado, seu pai a mandava pensar sobre o assunto na margem do rio, de castigo. Na adolescência suas primas tinham jogado vários Cds do U2 na água, durante uma briga e ela tinha passado a noite inteira chorando na margem, cantando as músicas que a correnteza levara. Foi inútil, a correnteza não retrocedeu. E a partir daquele momento entendeu que nada voltava e que era inevitável que as coisas passassem, às vezes rápido demais. Cresceu com isso em mente, era um pensamento muito racional.
Ao mesmo tempo em que tinha medo dessa conexão com César, temia deixar isso passar. Uma paixão não consumada, doeria mais do que um pé na bunda. Se desistisse de César, agora, se arrependeria para sempre e o arrependimento é dor de morte. Se perguntou se ele escreveria uma poesia para ela na primeira noite que passassem juntos, imaginou eles acordados a noite inteira discutindo música e as aulas de canto.
O rio estava bem calmo naquela noite. Luísa começou a ler Noite de Reis. Não ligou para César.
Escolhendo a pizza
Era sábado e o sol não apareceu. César olhava a rua pela sacada, quando a diarista chegou. Abriu a porta e riu, brincou que ele já estava acordado e vestido. César respondeu que ia mais cedo dar aula porque tinha compromisso à noite. Ela perguntou se era melhor deixar alguma roupa passada e seguiu para a cozinha. Como ele não respondeu, antes de ir embora, deixou uma camisa social azul e uma calça preta no cabide. Também jogou spray de lavanda nos cômodos, já pensando em agradar a moça “sortuda” (segundo ela).
De bom humor, César começou a aula falando sobre o tema “Amor”, retratado por diferentes movimentos artísticos. Enquanto falava, olhava para o relógio. Às vezes falava uma palavra e olhava para o relógio, falava com um aluno e voltava a olhar para o relógio. Também estava como celular no bolso, esperando alguma mensagem de Luísa.
O cabelo estava preso, não em um coque - que ele odiava - de um jeito que deixava a frente solta e a parte de trás presa. Usava uma calça jeans e meias amarelas. Ele tinha uma coleção de meias coloridas e os alunos o faziam desfilar segurando as calças pelos joelhos.
Passava das 5 da tarde quando chegou em casa.
Sentou-se no sofá e ficou olhando para a estante. Livros premiados, cemitério premiado. Acendeu um cigarro. Gostava de fumar, mas não gostava do cheiro que deixava no seu corpo. Andou pela sala e pelo quarto vendo se tudo estava em seu lugar. Receber alguém era algo sério para ele. Colocou os controles remotos alinhados à tv do quarto, corrigiu a colcha que estava mais caída do lado esquerdo que do direito e até conferiu a posição dos travesseiros. Pegou o celular e começou a vasculhar o IFood. Achava muito sério escolher o jantar, uma grande responsabilidade. “Muito barato, muito caro, muito extravagante, horrível...”. Quarenta minutos depois, mandou mensagem pra Luísa escolher o que queria comer. “Pizza! Então vamos de pizza!”, resmungou ele. Não era exatamente o tipo de comida que gostaria numa noite de sábado, ainda mais acompanhado, mas fez questão de obedecer. “Ok, pizza. Mas de que tipo? Qual sabor?” Mais quarenta minutos escolhendo. Tomou banho, vestiu a calça preta e a camisa azul, penteou o cabelo, deixando-o solto. Passou o Sauvage no pulso. Ainda descalço foi em direção à estante. Levemente acariciou os livros de sua autoria. Pegou o último, abriu em uma página qualquer, em que a personagem contava uma história triste de sua infância. Ele lembrava de quando escutou a história, em uma noite de quarta-feira, com Bia deitada no sofá com a cabeça no seu colo. Tudo era material para César e de vez em quando ele se perguntava se não se forçava a conhecer pessoas para tê-las como insumos. Mas no fim das contas, ele se convencia que cada experiência, cada palavra estava marcada no fundo de sua alma. E pior, ele não esquecia de nada. Cada frase, cada pausa, o que a pessoa fazia enquanto narrava o fato. Tudo preenchia a alma de César. Talvez por isso ele estivesse cansado quando conheceu Luísa, sentia seu peito se desintegrando e Luísa o resgatara. Ela era tão animada, linda e livre. Agora ele estava bem de novo.
O entregador do IFood chegou, no mesmo instante que Luísa. César abriu o portão do prédio com uma mão e segurou as caixas de pizza com a outra. Beijou o rosto de Luísa com carinho, depois beijou a testa.
Luísa entrou segurando o bolo de nozes, ainda quente. Estava feliz, até cantarolava um samba.
Quando os opostos percebem que são opostos
Luísa deixou o bolo na mesa de vidro que ficava em frente à cozinha. Tirou o casaco preto que vestia, colocou nas costas da cadeira. César estava parado na porta assistindo Luísa analisar a sala. Fechou a porta e colocou as pizzas ao lado do bolo.
Havia uma tensão no ar. Quem daria o primeiro passo? Existe um primeiro passo? O que era mais correto? Jantar, conversar, beijar? Conversar, beijar e jantar? O que era melhor? Aliás, nesse momento Luísa já se perguntava por que César a havia beijado apenas no rosto. Será que ele queria apenas ser seu amigo? Analisando várias possibilidades, encostou as costas na parede da sala.
César observava calado, apenas olhando fixamente. Ela se sentia caçada, ele estava memorizando a cena. Num ímpeto, César joga seu corpo contra o de Luísa, pressionando contra a parede. Ela pensava rindo internamente, “rapaz perigoso... de inofensivo não tem nada”. Os dois metros até o quarto nunca foram tão longos, pensava César.
Quinze minutos depois César se jogou na cama, com o coração acelerado, e falou “OK, se a morte é assim, estou bem, feliz e tal.” Fechou os olhos, desejou que o tempo parasse. Luísa riu e falou que esperava um discurso mais eloquente depois do sexo com um escritor premiado. E ainda completou com “premiado não, premiadíssimo”. Lentamente César abriu os olhos e pensou no que deveria responder. Não conseguiu responder nada, precisava de tempo para se recompor. Naquele instante não queria falar nada, queria apenas fazer parte daquele ambiente e se perder um pouco no momento.
Luísa: César você não vai dizer nada?
César (sorrindo): Calma.
Luísa: É estranho você ficar tão calado, pensando. Foi algo que eu fiz? Algo que você não gostou? Você sabe quer a primeira vez de um casal não é incrível, mas vai melhorar.
Agora olhando seriamente para Luísa, sem compreender, César estende o braço esquerdo, para ela conseguir se deitar em seu peito. Luísa não percebe, agitada, levanta-se da cama. César fecha os olhos novamente, ainda tentando controlar sua respiração.
Luísa: Nossa, nem um poeminha para mim? Dizem que a vantagem de namorar com escritor é justamente desfrutar de um pouco de arte. Eu mesma namorei um músico que tocava violão de madrugada.
Luísa volta para o quarto, cantarolando o mesmo samba de antes. Ela repassa mentalmente todos os passos desde que entrou no apartamento de César. Ele, ainda mudo, sem roupa, na mesma posição, estende a mão esquerda e a puxa de volta para a cama. Tenta encontrar o maço de cigarros na mesa de cabeceira.
César (sorrindo): Desculpe, eu preciso aproveitar mais esse momento, sem tensão.
Luísa: Entendo, onde é o banheiro para eu tomar banho?
Meio cambaleante, César levanta e abre a porta do banheiro. Se joga na cama de volta. Luísa volta para o quarto.
Luísa: Você não vem? Me dá nervoso ver você assim. E o lençol está todo sujo.
César (rindo de olhos fechados): Assim? Estou bem confortável nesse lençol mesmo.
Luísa: César, eu tenho um pouco de TOC. Por favor, levanta e vamos tomar banho.
César abre os olhos, com uma expressão que estava entre triste e desesperada. Levanta-se da cama. Entra no banheiro com Luísa. Fica em pé se olhando no espelho, esperando Luísa sair do box. Apoia suas mãos no lavatório, passa a mão direita pela cabeça, tentando compreender o que se passava. Ele tinha uma impressão tão diferente de Luísa, achava que combinavam. Tinha errado? Passa uma toalha para Luísa e entra no box. A água quente agora tinha um gosto meio amargo. Ele franzia a testa.
Luísa: César, terminando aí a gente precisa ir à farmácia comprar a pílula do dia seguinte,
César: Mas agora? A gente nem comeu o bolo que você fez.
Luísa: Pois é, é outro TOC meu, estou desesperada. Já pensou se vem um Cesinha ou uma Luisinha? A gente estava perdido! Outra coisa, amanhã mesmo a gente precisa fazer um exame de sangue para ver se estamos realmente saudáveis.
César (rindo): Luísa, nós não estamos perdidos. Você está muito nervosa. Entra aqui nesse chuveiro!
Luísa: Você está brincando com coisa séria. Nós não somos adolescentes!
César (ainda rindo): Por isso mesmo. Veja só, filho nosso não passará fome, você é dona de uma padaria. Agora, obeso ele poderia ficar.
Ela responde alguma coisa, mas ele não entende. Começa a se enxugar e se enrola na toalha.
César: Mas você já está vestida! Está indo aonde?
Luísa: A gente vai na farmácia e na volta a gente come.
César: Jura mesmo que você vai fazer eu me vestir e dirigir por aí? Agora? Exausto e com fome?
Luísa: Não precisa eu vou sozinha.
César: Eu peço aqui no aplicativo da farmácia, pode ser?
Luísa: Boa ideia, isso. Fico mais tranquila.
César: Luísa você já fez terapia?
Luísa: Claro, inclusive tomo alguns remédios ótimos.
Luísa abraça César, que retribui, mesmo estando perplexo com a sequência de acontecimentos da última meia hora. Ficam uns minutos abraçados. César se veste. Está descalço e procura algo para beber na geladeira.
Luísa: Terminei de ler Noite de Reis.
César: Mas qual é o livro de Shakespeare que você mais gosta?
Luísa: Só li esse mesmo.
César olha para estante, engole seco, e aponta para a sequência infinita de livros de Shakespeare.
César: Não seja por isso, é só escolher e levar. Vai lendo aos poucos.
Ele pensa sobre a lista de leitura que tinha escrito alguns dias antes. Desiste de mostrar. Luísa anda pela sala olhando a estante.
Luísa: Ah, esses são os seus!
César diz que sim e abre a porta para o motoboy que trazia o tão desejado remédio.
César: Pronto, está mais tranquila?
Luísa: Vou tomar agora mesmo. Os exames a gente faz amanhã!
César coloca os pratos na mesa e serve Luísa. Eles conversam sobre coisas do dia a dia. Luísa parte o bolo, dá o primeiro pedaço para ele e segue até a estante. Começa a folhear um dos livros escritos por ele.
Luísa: Essas suas heroínas são demais, pena que algumas morrem.
César tenta responder, mas se engasga com o bolo.
Luísa: Você conheceu alguma dessas personagens? Na vida real?
César: Não exatamente. Aliás, acho que conheço cada vez menos as pessoas.
César olhava para o último pedaço do bolo que estava no seu prato com tristeza. Era realmente um bolo muito bom, mas estava meio zonzo, enjoado. Se jogou no sofá.
Luísa: Sabe, eu estava falando sério quando perguntei se você não ia escrever nem um poeminha para mim. A semana inteira pensei que você ia recitar alguma coisa em voz alta. Pensei que essa era a vantagem de ter um escritor por perto. Mas você está tão calado, introspectivo.
César olhava para o cemitério de paixões. Aquele espaço parecia fazer cada vez mais sentido. Pega o livro da mão de Luísa e coloca de volta na estante, em um movimento triste, lento.
César: Eu não sou uma máquina de escrever. O que você quer que eu escreva?
Ainda olhando para os livros, tenta sorrir.
Luísa: Você vai me matar no fim do livro?
César: Achava que não. Tinha alguma esperança. Mas acho que não renderia um livro, um conto talvez.
Luísa: Assim você me assusta. Sabe, quando estava subindo de elevador me olhei no espelho e me perguntei que tipo de mulher você gostaria que eu fosse. Mais bonita, talvez? Um pouco mais magra? Tudo o que eu fiz desde então foi tentar te agradar. Tentar parecer mais inteligente... eu estava preparada para dizer sim para tudo o que você oferecesse ou pedisse nessa noite. Quer meu coração? Sim! Quer namorar comigo? Sim! Quer ler mil livros da estante comigo? Sim! Mas não entendo o que houve. Pensei que éramos mais parecidos. Como posso ter me enganado assim.
César: Eu estava apaixonado por você. Sentia algo quase que incontrolável. Mas depois dessa noite, não sei. Talvez a gente precise repensar algumas coisas. Eu também estava disposto a te dizer todos os sins que você merecia ouvir. Acho que nos enganamos. Nossa convivência seria muito difícil.
Luísa: Você quer que eu durma aqui? Lembra do que você escreveu na contracapa do livro, sobre passarmos a noite juntos?
César: Não, prefiro que você vá para a sua casa. Tudo bem?
Luísa: Esse é um sim que eu não esperava falar hoje.
Luísa pegou sua mochila e saiu.
César ligou o notebook e começou a escrever:
Corações na bandeja
Te sirvo meu coração numa bandeja
Bandeja fina, de prata
Veja, sei que ele está esmigalhado, desconjuntado até
Te sirvo do jeito que ele é
Não para que tenhas pena, mas porque não posso esconder
Tudo nele dói, tudo nele é desejo
Tudo nele é pesar e um pouco de arrependimento
Me perguntas, porque sirvo numa bandeja de metal precioso algo tão deplorável
Veja, a bandeja é o meu altar mais cruel, é o altar da minha esperança
Se fosse possível, eu não te serviria nada.
Luísa não chorou no caminho para casa. Se falaram dias depois e resolveram ficar amigos. Depois, nunca mais se falaram. César escreveu uma personagem parecida com Luísa fisicamente e não a matou no fim. Luísa nunca leu o livro, que por acaso, foi premiado.
Fè Coelho
Enviado por Fè Coelho em 11/04/2025