Fè Coelho
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O cachorro do cemitério
O cachorro entrou no cemitério seguindo o dono. De longe parecia um pastor alemão, de perto o focinho pequeno e o jeito de malandro o denunciava: vira-lata! Ele era um vira-lata fedido, peludo e simpático.
O dono do cachorro era um senhor moreno, que arrastava os chinelos de maneira cansada e deprimida pelo cemitério. O velho parava de campa em campa, todos os dias. O cachorro o seguia a exatamente dois metros de distância.
Esses dois metros eram uma distância segura, pensava o cachorro. De vez em quando o dono se irritava com o caminho estreito entre as campas ou com as velas espalhadas entre os jazigos e descontava no cachorro, chutando a sua barriga. Os dois metros eram suficientes para o cachorro se defender fugindo. Sim, defender, porque o cachorro não teria coragem de avançar no homem que o abraçava à noite, quando o vento não o deixava dormir.
Dona Cida levava Luana pela mão procurando o caminho mais curto para o túmulo da família.
Os bisavós de Luana já tinham morrido há mais de 60 anos. Ela não entendia porque a mãe limpava o túmulo a cada 15 dias. Aquilo era um fardo para Luana, que tinha que sair mais cedo da loja, pegar a mãe em casa, gastar 10 reais em velas, rezar e levar a mãe de volta para casa.
Tinha chovido a tarde inteira e faltavam vinte minutos para o cemitério fechar. Luana tinha feito o caminho mais longo e mais congestionado para não chegar a tempo. Justamente naquele dia, os motoristas tinham deixado os carros em casa e o sol apareceu quando elas estavam a uma quadra do cemitério.
O túmulo da família Monteiro ficava na parede direita, na altura dos joelhos de dona Cida. Sempre que parentes de defuntos enterrados em níveis mais altos acendiam velas, a cera escorria na lápide dos avós de Luana. Em frente, havia um caminho para jazigos luxuosos e o acesso era feito por uma escada de cimento, com três degraus, onde Luana costumava sentar esperando a mãe.
Dona Cida tirou de uma sacola de feira um pano de chão, uma esponja amarela e uma garrafa de álcool. Ela começou a tirar a cera da lápide com a unha, depois esfregou a pedra marrom do túmulo com a esponja e por último passou o pano com álcool em toda a campa.
Luana viu uma pipa voando por cima do cemitério e pediu a Deus para que quando morresse, virasse pipa para deslizar no céu azul e ainda observar o túmulo dos bisavós, que seria seu também. Ela pensava em morrer aos 70 anos, antes que a esclerose, comum na família, se manifestasse.
Pensando nas inúmeras vantagens de ser uma pipa, Luana apoiou os cotovelos em um degrau, direto numa poça d'água. Levantou xingando e chutou os degraus. Dona Cida reclamou do barulho.
Luana pegou algumas folhas de papel-toalha no banheiro e tentou secar as mangas. Com o mesmo papel, forrou o segundo degrau da escada para sentar.
O cachorro assistiu a cena escondido atrás de um dos túmulos de mármore e ficou interessado naquela figura que chutava a escadaria. Seu dono deu a volta nos jazigos de luxo e saiu em uma viela que dava para o banheiro, à esquerda do túmulo da família Monteiro.
O dono entrou no banheiro e fechou a porta. O cachorro deitou no chão molhado, perto de Luana.
Luana olhou desconfiada para aquele cachorro peludo e sujo, mas como ele ficou imóvel, em posição de esfinge, voltou a rezar.
Tinha mais uma pipa no céu e dava para escutar moleques correndo, no outro lado do muro.
O cachorro olhava para Luana intrigado. O que ela estaria pensando? Inquieto, levantou e foi cheirar a porta do banheiro. O dono vendo o focinho do cachorro por baixo da porta, deu um chute. O cachorro ganiu e deitou ao lado de Luana, com o focinho no chão molhado.
Luana fechou os olhos se perguntando o que a diferenciava do cachorro. Não havia diferença, os dois estavam entediados com a vida. E de repente, estar em um cemitério nem era tão incômodo. A presença da morte era certa esperança.
Ela tirou o sapato do pé direito e aproximou os dedos do pêlo do cachorro. Tomou coragem e alcançou os pêlos com o dedão. Como o cachorro não se moveu, agora com a mão direita, Luana acariciou primeiro as costas, depois as orelhas e por último o focinho.
O cachorro lambeu a mão de Luana e voltou a deitar o focinho no chão.
Luana levantou e cobriu o cachorro com o pano de chão.
Dona Cida tirou pano de chão de cima do cachorro e o esfregou no vidro que cobria a foto dos avós.
Luana tirou seu casaco de veludo preto e cobriu o cachorro. O cachorro achou estranho o cheiro doce de Luana. Ficaram se olhando por alguns segundos, até que o dono abriu a porta do banheiro.
O dono cumprimentou Luana com a cabeça e seguiu para a porta do cemitério.
O cachorro ficou em pé, vendo o dono se afastar e o pesar de Luana pela separação. Luana tirou o casaco do cachorro, esperando que a ação facilitasse a decisão dele. O cachorro deu dois passos em direção a porta do cemitério e sentou virado para Luana.
Dona Cida jogou álcool no cachorro, que andou mais um pouco e sentou novamente, olhando para Luana.
Luana tirou o cachecol vermelho do pescoço, enlaçou o pescoço do cachorro e o abraçou. De joelhos no chão molhado do cemitério, ela imaginou os dois como pipas fugindo dos moleques.
O cachorro correu no segundo assovio do dono, arrastando as pontas do cachecol pelo cemitério. Dona Cida já tinha limpado a campa, deu um beijo na filha e tomou o caminho da saída.
Fè Coelho
Enviado por Fè Coelho em 08/01/2025
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